Em 17 de maio de 1990, a Organização Mundial de Saúde (OMS) retirou a homossexualidade da lista internacional de transtornos mentais, rompendo com um estigma e promovendo avanços na luta pelos direitos dessa população. A data foi escolhida para marcar o Dia Internacional de Combate à LGBTfobia, celebrado nesta quarta-feira. No Rio Grande do Sul, a luta contra essa forma de preconceito vem sendo respaldada por ações permanentes e transversais do Estado, que buscam garantir o acesso aos direitos, à cidadania e ao pleno desenvolvimento da população LGBTQIA+, além de combater a violência sofrida por esse grupo.
O governador Eduardo Leite afirmou que a data não deve ser lembrada apenas pela população LGBTQIA+, mas por toda a sociedade, como forma de conscientização. “É um dia para todos que querem viver com mais tolerância, mais respeito e mais igualdade”, destacou.
Primeiro líder do Executivo estadual assumidamente homossexual, Leite frequentemente defende a empatia e o respeito à diversidade como fatores de fortalecimento e desenvolvimento social. “Lutamos por uma sociedade onde haja respeito. Saber se colocar no lugar do outro e entender a dor do outro é importante nos dias que estamos vivenciando.”
Para coordenar as políticas públicas nesta direção, foi criado o Departamento de Diversidade Sexual, na Secretaria de Justiça, Cidadania e Direitos Humanos. O departamento foi responsável pela elaboração do Decreto 56.521/2022, que criou a Rede Estadual de Proteção à População LGBTQIA+, que atua em parceria com os municípios.
As ações são pensadas de forma transversal e colaborativa, conforme o diretor do departamento, Daniel Morethson. “O departamento trabalha na construção das políticas públicas e na articulação entre os movimentos sociais e o governo, em um trabalho de coordenação com todas as secretarias. Debatemos, desenvolvemos e levamos os projetos para as secretarias, que os executam em diversas frentes”, explicou.
Uma das políticas consiste no Decreto 56.229/2021, assinado pelo governador Eduardo Leite, que reserva vagas para pessoas transexuais e travestis no âmbito dos concursos públicos para cargos efetivos e nos processos seletivos para contratos temporários de órgãos e entidades da administração pública do Executivo.
De maneira pioneira, o Rio Grande do Sul promoveu essa iniciativa, com o objetivo de representar a pluralidade da população no serviço público e de reforçar ações de inclusão dessa população e de outros grupos com histórico de violação de direitos e exclusão social.
A Superintendência dos Serviços Penitenciários (Susepe) foi a primeira instituição do governo a destinar vagas a essa parcela da população, e a Fundação de Atendimento Socioeducativo (Fase), a segunda, com vagas para pessoas trans. No primeiro chamamento, houve admissão de um empregado trans para a vaga de assistente administrativo. Para o cargo de agente socioeducador, três candidatos foram aprovados.
Dentro da comunidade LGBTQIA+, a população transexual é uma das mais vulneráveis e expostas à violência. As dificuldades no acesso ao mercado de trabalho formal, em razão do preconceito, muitas vezes empurram essas pessoas para atividades como a prostituição, reforçando estigmas.
A secretária-adjunta da Cultura, Gabriella Meindrad, que é mulher trans, destaca a educação inclusiva e as oportunidades de trabalho e acesso à cultura como fatores transformadores na trajetória das pessoas trans, como ocorreu com ela.
“As barreiras sempre foram muito presentes na minha vida por ser uma mulher trans, do interior do Estado. Existem muitos estigmas ainda sobre a nossa imagem que nos vulnerabilizam. A caminhada é longa e eu sou uma das privilegiadas que teve acesso ao Ensino Superior em um país em que apenas 1% da população trans chega à universidade”, lembrou.
Ela falou sobre o impacto da representatividade de pessoas LGBTQIA+ em posições de liderança, que muitas vezes parecem distantes para essa parcela da população tão atingida pelo preconceito.
“Meu propósito de vida sempre foi o de promover transformação. Ser a Gabriela todos os dias requer muita responsabilidade, porque ocupar hoje um espaço de relevância como mulher trans, servidora pública, que trabalha para ser e fazer mais e melhor, é algo que dá visibilidade positiva para as pessoas trans. Isso me move a seguir em frente para que todos tenham também visibilidade e conquistem espaços cada vez maiores”, disse.
Gabriela pontuou ações da Secretaria da Cultura (Sedac) que colocam a diversidade em pauta, como o lançamento de editais específicos e com cotas para pessoas travestis e transexuais no âmbito do Pró-Cultura – Sistema Estadual Unificado de Apoio e Fomento às Atividades Culturais, além de eventos que celebram a diversidade e promovem conscientização.
Outra servidora do Estado que exemplifica a importância da representatividade e da geração de oportunidades é Gloria Crystal. Ela, que também é mulher trans, ocupa o cargo de chefe da Divisão de Diversidade e de Combate à Intolerância da Secretaria de Justiça, Cidadania e Direitos Humanos (SJCDH). Completou 58 anos na semana passada, superando a expectativa de vida da população trans no Brasil, que é de 35 anos.
A morte tão precoce acontece majoritariamente por meios violentos, como apontam as estatísticas. Por isso, apesar de uma consolidada trajetória artística, do seu trabalho com os movimentos sociais e no setor público e da formação de uma família, ao ser perguntada sobre sua maior vitória nestas quase seis décadas de vida, Gloria respondeu: “Foi ter sobrevivido. Estar aqui é minha maior vitória. Vivo no país que mais mata transexuais no mundo, mas em um Estado onde posso trabalhar e fomentar políticas públicas para essa população, e isso é um avanço”.
“Venho de uma época em que existia uma delegacia dos costumes. Lá sofríamos todo o tipo de violência para que aprendêssemos a ser homem. Um absurdo. Nunca imaginei que um dia eu, vítima daquela violência, pudesse estar trabalhando com políticas públicas de inclusão”, comentou. “É possível que a nossa população esteja inserida em todos os lugares. Temos esse direito e estou aqui, sem vitimismo e otimista, para contar essa história.”
Gloria reforçou a necessidade da inclusão da população LGBTQIA+ no mercado de trabalho formal como uma porta de acesso à cidadania e garantia de dignidade.
Vagas de trabalho
A Fundação Gaúcha do Trabalho e Ação Social (FGTAS) promove ações com a unidade móvel do Sine, selecionando vagas de empregos e ofertando em eventos que celebram a diversidade, além de oferecer oficinas de capacitação.
Na área da saúde, a partir do incentivo financeiro do Programa Assistir, foram abertos ambulatórios de especialidades no processo transexualizador, destinados ao atendimento clínico e psicossocial de pessoas trans.
Hoje existem três ambulatórios: em Santa Maria, no Hospital Casa de Saúde, em Pelotas, no Hospital Beneficência Portuguesa, e em Canoas, no Hospital Universitário. Eles são referência de atendimento para 301 municípios.
Delegacia de Combate à Intolerância
O preconceito estrutural é a raiz de uma série de violências sofridas pela população LGBTQIA+. Desde 2020, quando foi inaugurada em Porto Alegre, a Delegacia de Combate à Intolerância concentra as investigações de casos de preconceito e discriminação contra essa população e outros grupos vulneráveis, que antes ficavam sob a apuração de delegacia não especializadas. Cerca de 275 inquéritos foram instaurados e 102, remetidos ao Ministério Público, com 80% de elucidação dos casos.
Os agentes que atuam no órgão participam de ciclos de qualificação que debatem temas como ações afirmativas, políticas públicas, conceitos e legislações específicas, além de oferecerem atendimento humanizado e acolhimento às vítimas.
Inclusão e promoção dos direitos na escola
A desconstrução dos preconceitos passa também pela formação escolar. O sofrimento causado pelo sentimento de exclusão e pela violência sofrida pela população LGBTQIA+ se reflete, muitas vezes, na evasão escolar. Por isso, a Secretaria da Educação (Seduc) realiza ações de inclusão e promoção dos direitos.
Coordenadas pela Assessoria de Direitos Humanos da Seduc, as iniciativas visam orientar as escolas estaduais, acolher os alunos e assegurar a permanência deste público em sala de aula, além de promover formações com os assessores das Coordenadorias Regionais de Educação (CREs).
Desde 2019, em cumprimento à normativa do Supremo Tribunal Federal (STF), no ato da matrícula o aluno que desejar pode utilizar o seu nome social, que fica registrado no Sistema Informatizado da Seduc. Com isso, todos os documentos gerados passam a constar com o gênero escolhido pelo aluno.
No sistema penal e socioeducativo, uma portaria publicada em 2021 estabeleceu uma política específica quanto à custódia de pessoas LGBTQIA+ presas e egressas do sistema prisional do Rio Grande do Sul, garantindo direitos e atendendo às políticas nacionais e internacionais e a legislação vigente. Além de garantir a dignidade, o objetivo é proporcionar oportunidades de educação formal, trabalho, remição de pena, atenção integral à saúde e assistência psicológica, social e jurídica.