O jagunço Riobaldo, personagem do livro Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, pretende organizar o mundo de tal forma, que o mal não possa mais surpreender as pessoas, a fim de que todos possam precaver-se das desgraças com facilidade. Bela ideia. Já que não pode acabar definitivamente com as coisas ruins, então sonha separar o bem do mal. Mas essa árdua e longa luta do herói dá em nada. Completamente. Desanimado, certo dia ele compreende que o mal “está misturado em tudo”. O diabo pode ser encontrado “nas mulheres, nos homens, até nas crianças”, conclui.
Mas o pior não é o fato de o mal estar misturado em tudo; para Riobaldo, o pior é que o mal exerce o domínio do mundo. E o homem, pobre homem, não tem alternativa, é obrigado a viver nesse mundo dominado pelo “cão”.
O Jagunço sabe que Deus foi quem criou tudo, tem poder sobre tudo, é dono de tudo. Mas está longe demais para livrar o homem de cada coisinha ruim que o diabo faz, no varejo, todos os dias. É que Deus entregou a posse do mundo para o diabo, e agora “só escritura os livros mestres” lá no céu, sem importar-se com o sofrimento cotidiano do homem.
A ideia de Riobaldo sobre Deus e o diabo não é nenhuma bobagem; representa na verdade uma cultura que impregna a humanidade toda. Fomos ensinados quando crianças que Deus mora no céu, e tem a imagem de um homem muito idoso, de longas barbas brancas, vestido de branco, assentado em um trono segurando um cajado com a mão direita. Um senhor de rosto extremamente sério e olhar fechado, circunspecto. Ninguém (nem mesmo um adolescente) ousa descrevê-lo sorridente, numa roda de amigos ou participando de alguma brincadeira aqui na terra.
Para quase a totalidade das pessoas do mundo todo, Deus não brinca, não sorri, não tem amigos, enfim, é um sujeito mal humorado. Então penso: como poderemos nós espelharmo-nos nEle para conviver em família, para criar nossos filhos? E nem precisa dizer que uma pessoa sem amigos, solitária e mal humorada, que não sorri, que não brinca, é um grande desastre como pai ou como mãe.
Já a imagem que se tem do diabo, por incrível que pareça, é exatamente o contrário; embora aprendemos que por natureza é feio, guampudo e malcheiroso, como sempre está querendo nos enganar, aprendemos também que costuma apresentar-se como um sujeito bem apessoado, sedutor e brincalhão. Às vezes do sexo masculino, às vezes feminino. E, principalmente, ouvimos desde criança que o diabo está constantemente a nos rodear, está sempre bem pertinho de nós, ao contrário de Deus, que mora a milhões de anos-luz daqui.
Refletindo um pouco, não é difícil concluir que essa cultura sedimentada no mundo em relação a Deus e o diabo contribui para o triunfo da injustiça, da mentira, do engano, enfim, de tudo o que não presta, em detrimento da verdade, da justiça, da alegria e de outras coisas boas. Por quê? Porque, se Deus está longe, então fica difícil confiar nele e esperar pela sua ajuda imediata quando estamos em apuros. Ainda mais porque sabemos que ele não tolera o pecado, e todos somos pecadores (por isso às vezes queremos distância do Criador).
A partir dessa ideia, somos levados a culpar Deus pelos nossos fracassos e por desgraças que acontecem no mundo, pois, afinal, foi ele quem permitiu que o diabo tomasse conta do mundo. E já que o diabo está por perto, fica fácil dizer que nossos atos errados se devem a tentações do tinhoso.
Mas a Bíblia ensina diferente: Deus está mais perto de nós do que o diabo. Se o diabo nos rodeia para nos enganar, Deus está entre ele e nós para nos proteger. E se quisermos, Deus estará dentro de nós, inundando nossa vida de alegria e paz. Basta para isso que busquemos a sua companhia, empenhando-nos a fazer o bem praticando a justiça e a caridade. E aí pouco importa se o mal está misturado com o bem ou se o diabo está sempre por perto. Diz o salmo 121: “O Senhor é quem te guarda; o Senhor é a tua sombra à tua direita; o Senhor te guardará de todo mal; Ele guardará a tua alma”.
Por Nilton Kasctin Dos Santos (Promotor de Justiça e Professor)