O rádio divulga insistente: “Para fechar com chave de ouro a Semana Farroupilha, o show mais esperado do ano, com o maior conjunto tradicionalista do Rio Grande, o mais ouvido em todo o Brasil. Não perca esse grande espetáculo”. E segue trecho de uma música cantada pelo afamado grupo musical Os Serranos:
Gosto de fazer um potro se cortar na minha chilena.
Pra sentir o sopro do vento me esparramando a melena.
Crinudo que sacode arreio engancho só na paleta.
Pois as esporas que eu uso têm veneno na roseta.
Tenho um preparo de doma trançado com perfeição.
Pra fazer qualquer ventena saber quem é este peão.
“Criado em galpão” é o nome da música, cuja composição é de Walther Moraes, J. Sampaio e Q. Grande. É uma das músicas preferidas do gaúcho. Refiro-me ao gaúcho “macho”. “Valente”. Que gosta de músicas com letras que exaltam espancamentos de cavalos. Uma valentia e tanto!
Um amigo advogado me diz que isso é apenas poesia. E na cabeça de milhares de gaúchos é isso mesmo. Relatos reais de crueldade real contra animais indefesos virou poesia. Tradição. Cultura. Por isso que até o dinheiro dos nossos impostos às vezes é usado por municípios para pagar shows milionários de artistas que cantam uma barbaridade dessas.
Vejam esta outra, cantada pelo grupo musical Os Monarcas, e até pelo grande Elton Saldanha:
Já montei em potro xucro num pelado de rodeio.
De quebrar duas esporas e atorar as pernas do freio.
É coisa que eu acho lindo um crinudo vindo aos berros.
Se batendo no meu mango e se cortando nos meus ferros.
Não escolho pelo ou marca nem o lado de montar.
Ventana que corcoveia aprende a me carregar.
Crinudo que se rebolca eu faço ajoelhar na grama.
Um potrinho que ainda não teve contato físico com humanos é abruptamente separado de sua mãe. Enquanto corre desatinado no campo para escapar do laçador, é brutalmente derrubado com um “pealo”. Depois de amarrado, tem um ferro enfiado na boca, cordas de couro duro passadas por debaixo do rabo, das virilhas e da barriga, bem apertadas. E “aperos” presos ao lombo. Então o valentão monta e começa a bater no animal com um relho grosso de couro seco trançado, duro como ferro – o mango. Bate sem piedade, com toda a força de um homem forte e experimentado na lida braçal. Às vezes por horas a fio. E ainda cortando fundo o couro do animalzinho, dos dois lados, com as tais “chilenas”, as esporas (rosetas de ferro ou aço com pontas afiadas presas às botas do domador). Bem como dizem essas músicas.
É claro que o bichinho salta. E “berra”. E sangra muito pela boca, por causa do ferro e de uma corda rústica amarrada por baixo da língua só no maxilar, soqueada com força e sem parar pelo “valente” domador. Isso causa lacerações e cortes profundos na gengiva, nos lábios, na língua, no céu da boca e nos dentes do pobre animal. Sangra nas virilhas, pois quanto mais pula mais as cordas cheias de quinas duras apertam. E sangra pelos cortes dos ferros das esporas. Dos dois lados do corpo.
Isso é a “coisa que eu acho lindo” dos tais artistas que cantam e compõem isso. O nome dessa música é “O Sul é meu país”. Sim, esses artistas “exaltam” e representam o Rio Grande com esse tipo de “poesia”. E passam às nossas crianças a cultura da valentia do gaúcho. Só que em forma de violência contra os animais. Uma valentia que é uma infame covardia.
Por Nilton Kasctin Dos Santos (Promotor de Justiça e Professor)