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O bolo de Deus. Por Nilton Kasctin Dos Santos (Promotor de Justiça e Professor)
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Publicado em 06/10/2023

Tudo ia bem na vida de Ana Paula. Notas boas no colégio, viagens de férias a cada ano melhores, amizades de verdade - não só daquelas virtuais. E agora um sonho alimentado ainda na infância está prestes a realizar-se. O grupo musical do qual participa na igreja irá fazer sua primeira gravação profissional. Ana Paula é a vocalista. Mas o principal, como costuma dizer sua mãe, é que essa moça querida, inteligente, talentosa e bonita, nos seus 16 anos de vida, jamais teve qualquer problema de saúde. Nem uma gripe. Bênção pura, dizia a mãe.

         Mas há três dias ela está diferente. Problemas de adolescente. Inúmeros deles a afligem. Impiedosamente.

         - O que está acontecendo contigo, minha filha - indaga a mãe, assim que Ana Paula chega da aula. - Você sempre chegava cantando e me dava um abraço... e agora vai direto para o quarto!

         - Não quero falar, mãe. Me deixe em paz – retruca a filha, deixando escapar um breve soluço.

         Enquanto fala, um lampejo de olhar permite que a mãe veja seus olhos vermelhos. Havia chorado muito durante o dia. Sozinha.

         É melhor deixar para depois, conclui a mãe.

         Ana Paula não sai do quarto para o jantar. A mãe não insiste. E convence o pai a fazer o mesmo. Até o faz retroceder da ideia de obrigar a filha a abrir a porta do quarto e vir para a sala.

         Visivelmente nervoso, o pai também não apetece o jantar, apesar da fome provocada por um dia duro de trabalho. Caminha pela casa sem parar e insiste que a mãe fale com Ana Paula, a fim de saber de uma vez a causa daquela tristeza.

         Pai é assim mesmo. Apressado. Preocupado demais.

         - Calma, calma, depois eu vejo – limita-se a dizer a mãe.

         Hora de dormir. O pai se recolhe primeiro. Tudo combinado com a mãe, que agora sente chegado o momento de conversar com a filha.

         Pé ante pé, vai à porta do quarto de Ana Paula. Uma surpresa boa. A porta está entreaberta. A mãe sabe que agora a alma da filha querida também se acha entreaberta. Sedenta pelo consolo da mãe.

         Sentadas na cama, mãe e filha iniciam um diálogo, que termina na cozinha. Lugar predileto das duas. Onde centenas de vezes elas prepararam pratos diferentes e divertidos. Muitos deles inventados por Ana Paula ainda criança. A mãe sempre soube incentivar o talento natural de chef da filha. Que não é menor do que o seu invejável dom para a música.

         Ana Paula adora cozinhar. E comer com os pais os pratos que cria. Mas o que mais aprecia é comer o bolo da mãe. Desde criança. Um bolo simples, daqueles que toda dona de casa sabe fazer. Mas com algo especial: ser o bolo da mãe.

         - Você quer um pedaço de bolo? – pergunta a mãe.

         - Claro que queria, se tivesse um dos teus aqui.

         - Mas está aqui, pode começar tomando esse óleo – replica a mãe, colocando um frasco de óleo de soja sobre a mesa.

         - Você enlouqueceu, mãe, quem é que toma óleo de soja cru? – indaga Ana Paula assustada.

         - Então coma uma colherinha de fermento, ou esse prato de farinha de trigo – continua a mãe.

         A moça fica literalmente sem palavras, extasiada diante da postura estranha da mãe. Mas quando a mãe lhe propõe que então coma três ovos crus, reage levantando depressa da cadeira e exclama com náusea:

- Que nojo!

         - Você tem razão, filha, todas essas coisas parecem ruins sozinhas, mas quando as colocamos juntas, na medida certa, elas formam um bolo delicioso!

         - Deus trabalha do mesmo jeito. Às vezes perguntamos por que Ele quis que passássemos por momentos difíceis. Mas Deus sabe: todas as situações ruins, postas na vida da gente na ordem certa, sempre nos farão bem. A gente só precisa confiar em Deus, e todas as coisas ruins se tornarão boas.

         Enquanto preparam o bolo, Ana Paula expõe com detalhes as razões de sua tristeza, que agora já é coisa do passado mesmo sem uma só palavra de aconselhamento da mãe. Na verdade ela nem precisava de conselhos; só de atenção.

         - Mãe, esse bolo estava divino – diz num longo abraço de boa noite. Transbordando de alegria.

Por Nilton Kasctin Dos Santos (Promotor de Justiça e Professor)

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