A assistente social atua na função há treze anos. Está acostumada a visitar lares destruídos pelo alcoolismo, separações mal resolvidas e intrigas parentais, cujas vítimas são sempre os mais fracos: crianças, idosos e mulheres vulneráveis. Mas a situação na casa de Arlindo a surpreende.
- É deprimente, doutor, dá vontade de chorar – explica a profissional, acrescentando que procurou realizar um trabalho estritamente técnico, mas que nessa ocasião não lhe foi possível segurar a emoção. Emoção de mãe, de filha, tia e irmã, tudo ao mesmo tempo.
Arlindo é um ancião de oitenta anos. Abandonado pela família, divide seu drama apenas com a cuidadora, única pessoa com quem também compartilha a casinha humilde. Há três anos luta contra um câncer de pulmão. Está visivelmente debilitado. Magro e muito pálido. Quando volta da quimioterapia, não consegue caminhar. Passa três ou quatro dias na cama. Quase sem dormir. Remoendo o inferno. As dores lancinantes o fazem contorcer-se e gemer baixinho. Deveria gritar, mas tem consciência de que não pode assustar sua cuidadora, que precisa ainda tê-lo como um homem forte, um herói.
Pergunto de parentes que possam responsabilizar-se pelos cuidados do idoso enfermo. E a resposta da assistente social é mesmo de causar revolta:
- Ele tem sete filhos. Todos estudados, bem de vida, mas ficaram magoados desde que o pai decidiu divorciar-se. E o isolaram completamente depois que casou de novo. Alegam que com a separação o seu Arlindo botou fora a metade do patrimônio. Duas fazendas. Com a doença da segunda mulher, foi o prédio da cidade, único bem que ainda restava. Alguns dos filhos não conhecem e nem querem conhecer a meia irmãzinha Letícia, hoje com dez anos de idade, nascida do segundo casamento de Arlindo. Ao enterro da segunda esposa, que morreu de complicações do parto de Letícia, só a filha mais velha compareceu, isso por insistência do marido, que é político.
Na Promotoria, do ponto de vista jurídico, a situação de Arlindo pode ser resolvida com relativa facilidade. Reúnem-se alguns documentos, requisitam-se diligências de costume, e, dentro de poucos dias, já estão em andamento um inquérito policial e um processo contra os filhos que abandonaram o pai doente. No campo criminal, o promotor busca a punição dos filhos ingratos; com o processo cível o que se pretende é uma decisão do juiz obrigando os filhos a cuidarem pessoalmente do pai, com a alternativa de custearem as despesas relativas à contratação de um cuidador habilitado.
Essas providências eu tomei, valendo-me do poder-dever que me conferem a Constituição e as leis. Mas o que gostaria mesmo de fazer, isso não me foi possível. E talvez não o seria também para qualquer outra pessoa.
Gostaria de restabelecer a união na família de Arlindo. De arrancar o egoísmo do coração de seus filhos, pois esse mal é a verdadeira causa do ódio que sentem pelo pai. Enfim, queria ser capaz de convencer os filhos de que o perdão faria bem para todos. Gostaria de fazê-los sentir-se no lugar do pai, que depois de dedicar a vida para criar sete filhos, como paga recebe desprezo e ódio.
Queria ainda fazê-los entender o sentido infalível da lei da semeadura. Por causa dela, logo, logo esses filhos viverão histórias semelhantes à de Arlindo. Todos.
Mas o que eu mais queria era devolver os anos de infância roubados da pequena Letícia. Não posso aceitar que uma menina órfã de mãe, com dez anos de idade, tenha, desde os sete, realizado sozinha a penosa tarefa de cuidadora do pai idoso e doente.
Por Dr. Nilton Kasctin Dos Santos (Promotor de Justiça e Professor)