Ainda existe no Brasil uma espécie de movimento que defende a alteração no acervo literário e musical infantil no sentido de extirpar das historinhas e músicas para crianças qualquer conteúdo que tenha conotação de violência, maldade ou alguma outra forma de comportamento politicamente incorreto. Assim, o lobo mau não pode devorar ninguém, nem a cuca ou a mula sem cabeça assustar as crianças. Para usar um exemplo gaúcho, o saci não pode mais fumar e importunar os humanos espantando cavalos. E o Peter Pan certamente terá que se tornar adulto, porque também não está certo viver eternamente criança.
Uma grande bobagem. Primeiro, porque na saga da existência humana a relação antagônica entre bem e mal sempre existiu. Até mesmo antes de Adão e Eva conhecerem o pecado já havia o bem e o mal representados pela árvore do fruto proibido. Segundo, porque a vida adulta, real, é infestada de situações em que o mal não só se faz presente, mas muitas vezes triunfa sobre o bem. Assim, saber da existência do mal ainda na infância, mesmo simbolicamente, significa preparar a criança para continuar perseguindo seus sonhos mesmo diante de alguma derrota. Terceiro, porque as crianças lidam mais com a fantasia das histórias e a sonoridade das músicas do que com a literalidade das palavras, de maneira que não aprendem maldade só por ouvir, ler ou cantar coisas de monstros, bruxas malvadas, assombrações ou guerreiros que lutam contra o bem. Quarto, porque a noção de limites de comportamento e disciplina só pode ser assimilada pela criança quando ela já possui referenciais para distinguir bem e mal, certo e errado. Caso contrário, a criança não entenderá a razão de algo ser proibido ou permitido.
A causa da violência e do desrespeito aos pais e professores não se assenta nos conteúdos de histórias, filmes ou músicas clássicas infantis. Veja-se que a maioria dos contos de fada dos livros de Grimm e Perrault (que viraram filmes) não foram inventados por eles, mas apenas recolhidos da cultura oral, o que permite concluir que tais histórias já existem há muitos séculos. E o desrespeito às regras familiares e sociais por crianças é coisa recente, ficando claro, portanto, que a culpa não é das historinhas ou musiquinhas “violentas”. Mais. Tudo indica que crianças e adolescentes que hoje desrespeitam pais e professores sejam exatamente filhos de pais que nunca tiveram tempo para com eles cantar canções de “maldade” ou contar-lhes historinhas de assombrações, monstros e bruxas.
Mas então qual a razão desse pensamento moralista? Não posso crer que cientistas da pedagogia não saibam que a grande causa da violência não está na forma clássica das produções artístico-culturais infanto-juvenis. Também não acredito em “algo por trás” da dita teoria. Acho apenas que se trata de uma bobagem, principalmente porque hoje em dia temos que lidar com assuntos infinitamente mais perigosos para crianças, como drogas e internet.
Silenciar sobre o mal na poesia representa negar a sua existência, e isso significa omitir das crianças a verdade sobre a vida adulta, povoada de obstáculos e dissabores que, mais cedo ou mais tarde, investirão contra todos. E retirar da poesia situações indesejáveis ou personagens maus significa também retirar da criança o gosto pela leitura, pois livros com todos os personagens absolutamente santos é algo monótono e sem graça. Só para lembrar, o bem e o mal estão presentes em cada livro da Bíblia, no Alcorão e em outros livros sagrados.
Por Dr. Nilton Kasctin Dos Santos (Promotor de Justiça e Professor)