Ouvi essa história triste em um programa de debates no rádio: - Hoje de manhã meu cachorro veio correndo e largou um bicho na porta da minha casa, Um gambá. Estava como morto, salpicado de sangue, mas ainda respirava. Pensei em chamar a polícia ambiental, mas aí lembrei que esse tipo de animal costuma se fingir de morto. Então botei minhas luvas, pus o bichinho em um saco plástico, amarrei bem pra não ficar cheiro no meu carro, botei o saco no bagageiro e comecei a rodar, rodar, até que achei um lugar descampado numa coxilha, longe dali, na beira da rodovia. Coloquei as luvas novamente, abri o bagageiro, peguei o saquinho e caminhei lavoura adentro uns 50 metros, onde depositei o bicho. O saco estava suado pela respiração, o que indica que estava vivo, apesar de não se mexer. Então fiz um furo no saquinho pra ele não se sufocar, e voltei pra casa. Acredito que fiz certo, né? Por instantes tive uma ilusória certeza de que, terminado o relato, alguém dentre os outros quatro radialistas iria dizer que ficara chocado com a atitude tão errada do homem, que optou por abandonar o bichinho ferido, ao invés de socorrê-lo. Na verdade, pensei até que pelo menos um deles iria convidar o contador da história para irem juntos ao local apanhar o animal e levá-lo ao veterinário. Até porque todos os participantes do programa eram pessoas formadas em curso superior, incluindo um ex-seminarista (que estudou pra padre). Que nada! Meu Deus! Todos riram fartamente do relato, ainda caçoando em torno do nome do animalzinho (gambá) e sua vulgar relação com uma pessoa alcoólatra. Minha costumeira sesta do meio dia converteu-se então em uma profunda reflexão sobre a maldade humana. Convenci-me de que o egocentrismo, a falta de amor e a maldade são a própria essência do ser humano. Esse animal vivia em um mato próximo à casa do homem. Morava com sua família de animais num oco de árvore ou numa toca, como nós, que vivemos com nossas famílias nas nossas casas. Tinha seu local de beber água e comer frutas. Todos as noites saía para isso. Foi caçado pelo cachorro porque se arriscou demais procurando comida perto da casa. É provável que fosse uma fêmea em amamentação, pois era época do crescimento dos filhotes que resultaram do acasalamento da primavera. E a necessidade de comer para amamentar fala mais alto do que o medo de um predador. As mães que amamentam se arriscam mais. Por que não chamou a polícia ambiental? Por que não levou o animal ao veterinário? Aliás, nem precisaria pagar, era só pedir doações pelo seu microfone no rádio. Por quê? Porque é preciso ser cruel com a Obra da Criação. Assim é a natureza do ser humano. Ao invés de socorrer o irmão, o coloca em um saco e leva para longe. Longe do socorro médico, longe da comida, longe da água, longe da sua família de bichos, longe do olhar de um eventual bom samaritano. O bichinho está ferido. O homem sabe disso. Qualquer um saberia, até mesmo uma criança. Mas é preciso fazê-lo agonizar em suplício solitário, lá bem longe, escondido. Vai ter febre. E sede. Muita sede, por dias a fio. Vai ter infecção, e muita dor. Vai ter muita larva de bicheira comendo sua carne ainda viva. Até à morte. E se for ver, as pessoas do tal debate conhecem de cor e salteado a parábola do bom samaritano. A história daquele camarada que encontrou um estranho ferido e o internou em um hospital por sua conta. É. Pagou do seu bolso o tratamento. E se for ver mais a fundo, tais pessoas dirão que seguem Jesus Cristo, que praticam o cristianismo. Arrisco dizer que o ex-seminarista do rádio também admira São Francisco, o santo irmão dos animais. Meu escrito não é contra esses radialistas. É uma reflexão quase desesperada sobre a vida. Sobre o amor à vida. À nossa e dos outros. E sobre o mal, a essência do ser humano. Por Dr. Nilton Kasctin Dos Santos (Promotor de Justiça e Professor) Imagem: Gemini / Rádio JB